quarta-feira, 29 de abril de 2020

CENSURA

Você que me lê, sabe como funcionava a censura no Brasil? Bom, eu não vou utilizar nenhum recurso acadêmico, e sim explicar muito por cima, usando um exemplo, como se estivéssemos conversando em um bar, tá bem? Aliás, falando em bar, saudades! Estamos no dia 41 da quarentena, e agora eu não sei mais como chamá-la. Isolamento social não dá, porque o nome é legal, era algo que eu perseguia (mentira, mas nem tanto), então... acho que podemos manter a nomenclatura original, até porque nunca nos disseram que seriam só 40 dias. Não sei quanto tempo ainda ficaremos nessa. Olhem! Já estava trocando de assunto de novo. Vamos lá:

 

O GOLPE DE 1964

 

Sim, GOLPE! Apesar de que na época, os militares e políticos (sim, era a mesma coisa) chamavam de "revolução" de 64, e ainda hoje alguns retardados bolsonaristas continuam a chamar assim. O Golpe foi vendido como uma "salvação" do Brasil do "terrível destino de virar um país comunista". Frases como "não seremos uma nova Cuba" eram frequentes em "marchas da família com Deus pela liberdade" (sim, ainda estou falando dos anos sessenta).

O governo de João Goulart foi assegurado em 1961 após a Campanha da Legalidade, liderada entre outros por Leonel Brizola, que garantiu a manutenção democrática por mais um tempo. Em 31 de março de 1964, Jango foi deposto e um governo militar se instaurou a força dando origem a uma sangrenta e longa (1964-1985) Ditadura (a qual denominamos civil-militar), que levou muitas vidas, traumatizou eternamente outras e é uma das páginas mais tristes e sombrias da história do Brasil. Lembro então, o quão ridícula é a posição de quem defende esse período, ou negue a existência dele como foi. O bolsonarismo atual é um regime que convence muitas pessoas a defender o indefensável, mas isso é assunto para outra hora.

 

A CENSURA

 

A censura como prática no Brasil, artístico-cultural, bem como à imprensa, sempre existiu, em diferentes níveis, desde a colonização. Mas a que eu pretendo trazer como reflexão pra vocês após essa breve introdução histórica, é aquela que foi imposta durante a Ditadura no Brasil, principalmente após a implementação do Ato-Institucional Nº 5 (o mais rigoroso e sangrento de todos) em dezembro de 1968. A história por trás das práticas que ela impunha eu vou contar em outras publicações. Aqui nós vamos analisar a canalhice (e burrice) de técnicos de censura que precisaram ler e dar seu parecer a uma música específica do grande Caetano Veloso.

 

A LETRA

 

ELE ME DEU UM BEIJO NA BOCA - CAETANO VELOSO

Ele me deu um beijo na boca e me disse

A vida é oca como a toca

De um bebê sem cabeça

E eu ri a beça e ele

"como uma toca de raposa bêbada"

E eu disse chega da sua conversa

De poça sem fundo

Eu sei que o mundo

É um fluxo sem leito

E e só no oco do seu peito

Que corre um rio

Mas ele concordou que a vida é boa

Embora seja apenas a coroa

A cara é o vazio

E ele riu e riu e ria

E eu disse, basta de filosofia

A mim me bastava que o prefeito desse um jeito

Na cidade da Bahia

Esse feito afetaria toda a gente da terra

E nós veríamos nascer uma paz quente

Os filhos da Guerra Fria

Seria um anticidente

Como uma rima

Desativando a trama daquela profecia

Que o Vicente me contou

Segundo a Astronomia

Que em Novembro do ano que inicia

Sete astros se alinharão em escorpião

Como só no dia da bomba de Hiroshima

E ele me olhou

De cima e disse assim pra mim

Delfim, Margareth Tatcher, Menahem Begin

Política é o fim

E a crítica que não toque na poesia

O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones

Já não cabem no mundo do Time Magazine

Mas eu digo (ele disse)

Que o que já não cabe é o Time Magazine

No mundo dos Rollings Stones Forever Rockin'And Rolling

Por que forjar desprezo pelo vivos

E fomentar desejos reativos

Apaches, Punks, Existencialistas, Hippies, Beatniks

De todos os Tempos Univos

E eu disse sim, mas sim, mas não nem isso

Apenas alguns santos, se tantos, nos seus cantos

E sozinhos

Mas ele me falou

"Você tá triste

Porque a tua dama te abandona

E você não resiste, quando ela surge

Ela vem e instaura o seu cosmético caótico"

Você começa olhar com olho gótico

De cristão legítimo

Mas eu sou preto, meu nego

Eu sei que isso não nega e até ativa

O velho ritmo mulato

E o leão ruge

O fato é que há um istmo

Entre meus Deus

E seus Deuses

Eu sou do clã do Djavan

Você é fã do Donato

E não nos interessa a tripe cristã

De Dilan Zimerman

E ele ainda diria mais

Mas a canção tem que acabar

E eu respondi

O Deus que você sente é o Deus dos santos

A superfície iridescente da bola oca

Meus deuses são cabeças de bebês sem touca

Era um momento sem medo e sem desejo

Ele me deu um beijo na boca

E eu correspondi àquele beijo

 

O PRIMEIRO PARECER


A técnica de censura Alzira Silva de Oliveira, em 20 de janeiro de 1982, optou pela proibição de ELE ME DEU UM BEIJO NA BOCA, alegando que como a música iria ser interpretada pelo próprio autor, o primeiro verso da canção (ele me deu um beijo na boca), o penúltimo (idem) e o último (e eu correspondi àquele beijo) se tratavam claramente de "homossexual'ismo'". Notem o uso do sufixo que denota doença à palavra. Ela afirma que a música não respeitava o regulamento (citando artigo e parágrafo), pois induzia quem ouvisse aos "maus-costumes".

Sim, há muita coisa errada nesse parecer. Primeiramente, o preconceito institucionalizado e sendo cometido pelo estado, alegando que o amor só o é nos moldes conservadores. Aqui, lembro o leitor de novamente traçar um paralelo com os dias de hoje ("você tem uma cara de homossexual terrível", disse o abominável ser que preside a República atualmente, mesmo já tendo passado 35 anos do fim da ditadura.)

Depois, devemos considerar que ela simplesmente ignorou o restante da letra genial de Caetano, muito provavelmente por não entender nada, e ateve-se só às frases que citou no parecer.

 

OS PARECERES DA LIBERAÇÃO

 

São três os pareceres de liberação. Eles não são menos preconceituosos do que o de proibição, pois ainda tratam a homossexualidade (por eles sempre tratadas como 'ismo') como algo errado. Mas o primeiro deles consegue ser de uma burrice desinteligência maior ainda por parte do técnico de censura.

Datado de 26 de janeiro de 1982 (não sei se Caetano pediu revisão ou se a letra tramitou dentro do próprio órgão), eu abro aspas para o técnico Coriolano Fagundes:

 

"numa longa, cansativa, xaroposa brincadeira poético-musical, Caetano alinha série de "nonsenses" - frases sem nexo - entremeadas de críticas insossas e provincianas (à Prefeitura de Salvador, que os baianos chamam de Cidade da Bahia), de previsões astrológicas, de premonição sobre política internacional, de comentários em torno de tendências musicais, de movimentos de minorias excêntricas (das quais o próprio autor é um típico exemplar) etc. etc., tudo isto conduzindo o ouvinte a coisa alguma e a proveito nenhum."


"CONDUZINDO O OUVINTE A COISA ALGUMA E A PROVEITO NENHUM!" Não! Cê é burro, cara! Que loucura! Que coisa absurda! (Essa icônica entrevista de Caetano aconteceu antes, então ele também deve ter recorrido a essa reação quando leu o parecer).

Os outros dois pareceres só falam que Caetano não quis ser literal ao escrever "ele me deu um beijo na boca", então optam pela liberação. E se quisesse, não é mesmo? Que lugar horrível para se viver onde o governo quer ditar o que é certo e errado, podando a liberdade de amar e de se expressar dos seus cidadãos.

Este foi apenas um exemplo de como agiam os técnicos de censura. Pra eles, Caetano era só um bicho-grilo qualquer que escrevia coisas sem sentido. Atentaram para as frases que eles consideravam imorais, e por isso consideraram a música. Porém, lembrem que a perseguição era muito maior do que essa: toda e qualquer pessoa que ousasse criticar o governo e suas medidas era severamente punida. Nasceu nessa época um grande movimento artístico-literário-jornalístico onde o objetivo principal era "driblar" a censura, conseguindo passar mensagens que os técnicos de censura não percebiam (e você viu que não era muito difícil enganá-los, pelos exemplos que coloquei aqui), mas isso é assunto para outra hora. Tenho histórias maravilhosas que meu pai me contou, que pretendo compartilhar, sobre como ele se virava nessa fase triste da história do Brasil.

Acho que é isso, não sei se ajudei alguém a entender um pouquinho sobre como as coisas funcionavam, ou se só resgatei uma história interessante sobre a obra de Caetano Veloso. Só sei que esse é um assunto que me interessa bastante e creio que será recorrente por aqui!

 

Vrindecrivo!

 

FONTE: Documento do Arquivo Nacional, na Praça da República no Rio de Janeiro. O código de referência é BR DFANBSB NS.CPR.MUI, LMU.9053


VÍDEO: CAETANO EM 1978, FALANDO O QUE EU GOSTARIA DE GRITAR PRAS MINHAS TIAS BOLSONARISTAS TODOS OS DIAS! (Acesso em: https://youtu.be/lOxSDaTfujU)

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