Você que me lê, sabe como funcionava a
censura no Brasil? Bom, eu não vou utilizar nenhum recurso acadêmico, e sim
explicar muito por cima, usando um exemplo, como se estivéssemos conversando em
um bar, tá bem? Aliás, falando em bar, saudades! Estamos no dia 41 da
quarentena, e agora eu não sei mais como chamá-la. Isolamento social não
dá, porque o nome é legal, era algo que eu perseguia (mentira, mas nem tanto),
então... acho que podemos manter a nomenclatura original, até porque nunca nos
disseram que seriam só 40 dias. Não sei quanto tempo ainda ficaremos nessa.
Olhem! Já estava trocando de assunto de novo. Vamos lá:
O
GOLPE DE 1964
Sim,
GOLPE! Apesar de que na época, os militares e políticos (sim, era a mesma coisa)
chamavam de "revolução" de 64, e ainda hoje alguns retardados bolsonaristas continuam
a chamar assim. O Golpe foi vendido como uma "salvação" do Brasil do
"terrível destino de virar um país comunista". Frases como "não
seremos uma nova Cuba" eram frequentes em "marchas da família com Deus
pela liberdade" (sim, ainda estou falando dos anos sessenta).
O
governo de João Goulart foi assegurado em 1961 após a Campanha da Legalidade,
liderada entre outros por Leonel Brizola, que garantiu a manutenção democrática
por mais um tempo. Em 31 de março de 1964, Jango foi deposto e um governo
militar se instaurou a força dando origem a uma sangrenta e longa (1964-1985)
Ditadura (a qual denominamos civil-militar), que levou muitas vidas,
traumatizou eternamente outras e é uma das páginas mais tristes e sombrias da
história do Brasil. Lembro então, o quão ridícula é a posição de quem defende
esse período, ou negue a existência dele como foi. O bolsonarismo atual
é um regime que convence muitas pessoas a defender o indefensável, mas isso é
assunto para outra hora.
A
CENSURA
A
censura como prática no Brasil, artístico-cultural, bem como à imprensa, sempre
existiu, em diferentes níveis, desde a colonização. Mas a que eu pretendo
trazer como reflexão pra vocês após essa breve introdução histórica, é aquela
que foi imposta durante a Ditadura no Brasil, principalmente após a
implementação do Ato-Institucional Nº 5 (o mais rigoroso e sangrento de todos)
em dezembro de 1968. A história por trás das práticas que ela impunha eu vou
contar em outras publicações. Aqui nós vamos analisar a canalhice (e burrice)
de técnicos de censura que precisaram ler e dar seu parecer a uma música
específica do grande Caetano Veloso.
A
LETRA
ELE
ME DEU UM BEIJO NA BOCA - CAETANO VELOSO
Ele
me deu um beijo na boca e me disse
A
vida é oca como a toca
De
um bebê sem cabeça
E
eu ri a beça e ele
"como
uma toca de raposa bêbada"
E
eu disse chega da sua conversa
De
poça sem fundo
Eu
sei que o mundo
É
um fluxo sem leito
E
e só no oco do seu peito
Que
corre um rio
Mas
ele concordou que a vida é boa
Embora
seja apenas a coroa
A
cara é o vazio
E
ele riu e riu e ria
E
eu disse, basta de filosofia
A
mim me bastava que o prefeito desse um jeito
Na
cidade da Bahia
Esse
feito afetaria toda a gente da terra
E
nós veríamos nascer uma paz quente
Os
filhos da Guerra Fria
Seria
um anticidente
Como
uma rima
Desativando
a trama daquela profecia
Que
o Vicente me contou
Segundo
a Astronomia
Que
em Novembro do ano que inicia
Sete
astros se alinharão em escorpião
Como
só no dia da bomba de Hiroshima
E
ele me olhou
De
cima e disse assim pra mim
Delfim,
Margareth Tatcher, Menahem Begin
Política
é o fim
E
a crítica que não toque na poesia
O
Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones
Já
não cabem no mundo do Time Magazine
Mas
eu digo (ele disse)
Que
o que já não cabe é o Time Magazine
No
mundo dos Rollings Stones Forever Rockin'And Rolling
Por
que forjar desprezo pelo vivos
E
fomentar desejos reativos
Apaches,
Punks, Existencialistas, Hippies, Beatniks
De
todos os Tempos Univos
E
eu disse sim, mas sim, mas não nem isso
Apenas
alguns santos, se tantos, nos seus cantos
E
sozinhos
Mas
ele me falou
"Você
tá triste
Porque
a tua dama te abandona
E
você não resiste, quando ela surge
Ela
vem e instaura o seu cosmético caótico"
Você
começa olhar com olho gótico
De
cristão legítimo
Mas
eu sou preto, meu nego
Eu
sei que isso não nega e até ativa
O
velho ritmo mulato
E
o leão ruge
O
fato é que há um istmo
Entre
meus Deus
E
seus Deuses
Eu
sou do clã do Djavan
Você
é fã do Donato
E
não nos interessa a tripe cristã
De
Dilan Zimerman
E
ele ainda diria mais
Mas
a canção tem que acabar
E
eu respondi
O
Deus que você sente é o Deus dos santos
A
superfície iridescente da bola oca
Meus
deuses são cabeças de bebês sem touca
Era
um momento sem medo e sem desejo
Ele
me deu um beijo na boca
E
eu correspondi àquele beijo
O
PRIMEIRO PARECER
A técnica de censura Alzira Silva de Oliveira, em 20 de janeiro de 1982, optou
pela proibição de ELE ME DEU UM BEIJO NA BOCA, alegando que como a música iria
ser interpretada pelo próprio autor, o primeiro verso da canção (ele me deu um
beijo na boca), o penúltimo (idem) e o último (e eu correspondi àquele beijo)
se tratavam claramente de "homossexual'ismo'". Notem o uso do sufixo
que denota doença à palavra. Ela afirma que a música não respeitava o
regulamento (citando artigo e parágrafo), pois induzia quem ouvisse aos
"maus-costumes".
Sim,
há muita coisa errada nesse parecer. Primeiramente, o preconceito
institucionalizado e sendo cometido pelo estado, alegando que o amor só o é nos
moldes conservadores. Aqui, lembro o leitor de novamente traçar um paralelo com
os dias de hoje ("você tem uma cara de homossexual terrível", disse o
abominável ser que preside a República atualmente, mesmo já tendo passado 35
anos do fim da ditadura.)
Depois,
devemos considerar que ela simplesmente ignorou o restante da letra genial de
Caetano, muito provavelmente por não entender nada, e ateve-se só às frases que
citou no parecer.
OS
PARECERES DA LIBERAÇÃO
São
três os pareceres de liberação. Eles não são menos preconceituosos do que o de
proibição, pois ainda tratam a homossexualidade (por eles sempre tratadas como
'ismo') como algo errado. Mas o primeiro deles consegue ser de uma burrice desinteligência
maior ainda por parte do técnico de censura.
Datado
de 26 de janeiro de 1982 (não sei se Caetano pediu revisão ou se a letra
tramitou dentro do próprio órgão), eu abro aspas para o técnico Coriolano
Fagundes:
"numa
longa, cansativa, xaroposa brincadeira poético-musical, Caetano alinha série de
"nonsenses" - frases sem nexo - entremeadas de críticas insossas e
provincianas (à Prefeitura de Salvador, que os baianos chamam de Cidade da
Bahia), de previsões astrológicas, de premonição sobre política internacional,
de comentários em torno de tendências musicais, de movimentos de minorias
excêntricas (das quais o próprio autor é um típico exemplar) etc. etc., tudo
isto conduzindo o ouvinte a coisa alguma e a proveito nenhum."
"CONDUZINDO O OUVINTE A COISA ALGUMA E A PROVEITO NENHUM!" Não!
Cê é burro, cara! Que loucura! Que coisa absurda! (Essa icônica entrevista
de Caetano aconteceu antes, então ele também deve ter recorrido a essa reação
quando leu o parecer).
Os
outros dois pareceres só falam que Caetano não quis ser literal ao escrever
"ele me deu um beijo na boca", então optam pela liberação. E se
quisesse, não é mesmo? Que lugar horrível para se viver onde o governo quer
ditar o que é certo e errado, podando a liberdade de amar e de se expressar dos
seus cidadãos.
Este
foi apenas um exemplo de como agiam os técnicos de censura. Pra eles, Caetano
era só um bicho-grilo qualquer que escrevia coisas sem sentido. Atentaram para
as frases que eles consideravam imorais, e por isso consideraram a música.
Porém, lembrem que a perseguição era muito maior do que essa: toda e qualquer
pessoa que ousasse criticar o governo e suas medidas era severamente punida.
Nasceu nessa época um grande movimento artístico-literário-jornalístico onde o
objetivo principal era "driblar" a censura, conseguindo passar
mensagens que os técnicos de censura não percebiam (e você viu que não era
muito difícil enganá-los, pelos exemplos que coloquei aqui), mas isso é assunto
para outra hora. Tenho histórias maravilhosas que meu pai me contou, que pretendo
compartilhar, sobre como ele se virava nessa fase triste da história do Brasil.
Acho
que é isso, não sei se ajudei alguém a entender um pouquinho sobre como as
coisas funcionavam, ou se só resgatei uma história interessante sobre a obra de
Caetano Veloso. Só sei que esse é um assunto que me interessa bastante e creio
que será recorrente por aqui!
Vrindecrivo!
FONTE: Documento
do Arquivo Nacional, na Praça da República no Rio de Janeiro. O código de
referência é BR DFANBSB NS.CPR.MUI, LMU.9053